CAHIS JOAQUIM NABUCO

Blog do Centro Acadêmico de História da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata (FFPNM).

6.29.2006

EPEH 2006

http://www.eneh2006.ufsc.br/

Pessol este é o endereço do ENEH 2006 que vai ser realizado de 02 a 09 de setembro de 2006, em Florianopolis.

Semana de História

Olá
A Semana de História está começando a ser construida. Com isso vamos iniciar também as nossas reuniões onde a participação e a opiniao de todos é de extrema importancia.
Adiantando algumas coisas gostaria de avisar que o tema será "História, Cultura e Arte". Outra observação importante é que os professores já foram avisados do evento e o mesmo já passou pelo Conselho da faculdade, tendo sido aprovado atraves de seu Pré-projeto, que ainda precisa de alguns ajustes... a primeira reunião está para ser marcada, creio que para a proxima semana, mas está informação será confirmada depois. Por isso queria pedir a voces que enviassem para este e-mail o numero de seus telefones a fim de facilitar a comunicação e a convocação para a reunião.

Agradeço a atenção de todos,
Gabriela Souto
1ª Tesoureira do CAHIS, Gestao 2006, Para Todos

6.28.2006

Construindo um Sentido Político para a dança

A história nos conta que a dança é uma das mais antigas artes criadas pelo homem. Registros rupestres, em cavernas pré-históricas, já nos sugerem uma certa necessidade instintiva em cadenciar movimentos e gestos, sejam para celebrar vitórias, sejam para celebrar momentos festivos.

O fato é que se movimentar, com o tempo, passou a ter novos e outros significados, como a dança. Nesse caso, vale lembrar que a Grécia se utilizava dela para fins lúdicos, misturando cantos e pantomimas para o deleite de todos. Mas já aí as intenções da dança se ampliavam no sentido de representar os acontecimentos mais importantes da vida grega, incluindo, os episódios políticos. Já em Roma, a lógica da dança estava ligada às ilustrações feitas sobre as fábulas populares, com muita música, acrobacias e números de circo. Mas também aí, elementos questionadores da realidade estavam implícitos.

Essas são, então, algumas das características da arte da dança que nos chegaram até a contemporaneidade. E entre elas, a importante condição de representar a realidade no contato comum entre os homens. Nesse sentido, a política é tão representativa quanto a dança. A política é carregada de significados simbólicos, por sua natureza de representação social, das coisas que os homens fazem e sentem e voltam a fazê-las e a senti-las, sobretudo depois que as pensam ou as vêem de forma diferenciadas, pelos vários apelos da crítica. A crítica como uma leitura mais profunda da representação, seja na política, seja na dança.

Assim é que, para nos tornamos políticos, precisamos não somente deste poder de representação, de leitura de significados, mas, fundamentalmente, do poder de construção do real, a partir dos pressupostos das críticas formuladas. Parece-nos, então, que o projeto Plataforma Recife de Dança Contemporânea – Ano II – percebe que este é um caminho legítimo para se fazer dança: envolvendo-se diretamente com a política; buscando, nesse âmbito, a definição de políticas públicas que permitam aos atores sociais ligados à dança, como de resto a toda sociedade, as possibilidades de criar canais para uma participação mais objetiva nas decisões sobre esta arte milenar.

Assim, o Plataforma Recife de Dança Contemporânea – Ano II – além de celebrar nossas emoções, através de sua natureza simbólica, nos ensina a pensar o simbólico nas relações políticas, tal qual sugere Hanna Arendt quando imagina que a política deve estar entre-os-homens (1). Também entre aqueles que dançam.

(1) ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1998.


Fonte: Prefeitura da Cidade do Recife

MATRÍCULAS

Olá pessoal

Se liguem na data da matrícula...

Vai ser de 17 a 21 de julho de 2006.

O dia da matricula de historia ainda vai ser divulgado, mas assim que sair eu informo a todos.


Atenciosamente:Gabriela Souto e Esequias Pierre.

6.19.2006

Mãe preta, Mãe África e Civilização

Elisa Larkin Nascimento*


Finalizo este artigo no dia 28 de setembro, Dia da Mãe Preta. Aqui no Rio de Janeiro, estamos celebrando os dez anos de Criola, entidade pioneira de mulheres negras. Essa coincidência me faz refletir sobre a evolução da imagem da mulher negra no Brasil. É impressionante o contraste. Por um lado, prevalece há séculos a noção convencional da Mãe Preta construída pela sociedade racista: um símbolo de subordinação, abnegação e bondade passiva. Por outro lado, surge o retrato da mulher negra construído por ela própria na ação social, na militância política e na vivência cultural, imagem esta concretizada na Casa de Cultura que edita esta revista Eparrei e em todas as organizações de mulheres negras. A Mãe Stella nos brindou esses dias com suas belas palavras a respeito dessa mulher Oya, rápida como o vento ao derrubar preconceitos e construir democracia. O tema da civilização africana nos propicia uma compreensão mais profunda de suas origens e identidade histórica, além de caracterizar o interface da questão racial com a questão de gênero.


Gênero e raça: as interfaces

O patriarcalismo associa as desigualdades sociais de gênero à condição feminina como conseqüências "naturais" da diferença entre os sexos. O racismo faz o mesmo com respeito às desigualdades raciais, de acordo com preconceitos e estereótipos derivados das teorias da inferioridade biológica do negro. Ou seja, o sexismo e o racismo se constituem e operam essencialmente da mesma forma. Os projetos de identidade dos movimentos sociais passam pela desconstrução das representações negativas da mulher e do negro criadas pelas ideologias do patriarcalismo e do supremacismo branco.
Uma das representações mais fortes a respeito da mulher e do africano é a de sua suposta incapacidade para criar conhecimento e operar avanços tecnológicos, uma noção que se revela patentemente irônica quando conhecemos um pouco da história africana. Não apenas os povos africanos construíram as bases da civilização ocidental, mas as mulheres exerceram um papel de parceria e liderança nesse contexto.

O antigo Egito e o conhecimento humano


Na versão corrente da história da filosofia, da ciência e da civilização ocidental, elas brotam subitamente na Grécia antiga, como se não tivessem raízes anteriores no Egito, cujas pirâmides são frutos da construção, ao longo de vários milênios, de um profundo e desenvolvido conhecimento humano. Os hieróglifos egípcios e seus antecedentes constituem o primeiro sistema de escrita, e o calendário do Egito antigo era mais exato do que o moderno. O sistema dos mistérios continha os principais elementos da ética e arrazoados sobre a vida em sociedade. Os egípcios manipulavam uma adiantada matemática abstrata desde treze séculos antes de Euclides: identificavam o valor de pi com uma exatidão sem precedentes; calculavam ângulos à precisão de 0,07o; desenvolviam sofisticadas técnicas e teoremas na matemática, geometria e engenharia. Hipócrates, o médico grego, é tido como fundador da medicina, quando dois milênios e meio antes os egípcios Atótis, Imhotep e seus sucessores desenvolviam os fundamentos de uma medicina objetiva e científica. Datada de 2.600 a.C., o papiro Smith, contém capítulos sobre doenças intestinais, hemintiase, oftalmalogia, dermatologia, ginecologia, obstetria, diagnóstica de gravidez, odontologia, e o tratamento cirúrgico de abscessos, tumores, fraturas e queimaduras. Esses egípcios iniciavam o conhecimento da farmacologia, patologia e anatomia, das técnicas de assepsia, hemostasia por cauterização, suturas, antissepsia com sais minerais, e vários outros tratamentos e curas.
Não podemos expor aqui os conteúdos do conhecimento e os avanços tecnológicos alcançados pela civilização egípcia. Cumpre registrar a tentativa de seu aniquilamento nos anais de uma História vista e projetada através de uma lente que apresenta o "milagre grego" como início prístino do desenvolvimento do conhecimento. Outra forma de negação do legado africano é a insistência em caracterizar a civilização egípcia como realização de outros povos, invasores do norte, ou ainda a persistente negação da identidade africana e negra dos egípcios. A obra de Cheikh Anta Diop, referência básica do resgate desse legado civilizatório, restabelece essas verdades por meio de rigorosa pesquisa científica.

O desenvolvimento tecnológico africano

Tais conquistas não se restringem apenas ao Egito. As tecnologias de mineração e metalurgia, a agricultura e a criação de gado, as ciências, a medicina, a matemática, a engenharia, a astronomia, enfim, todo um cabedal de reflexão e conhecimento caracterizava o desenvolvimento dos estados africanos. Em 1879, um cirurgião inglês visitava a região do atual país de Uganda, e registrou uma cesariana feita por médicos do povo banyoro, demonstrando profundo conhecimento dos conceitos e técnicas de assepsia, anestesia, hemostasia, cauterização, e outros aspectos da medicina. Praticava-se a remoção de cataratas oculares através de cirurgias, e tumores cerebrais eram operados no Egito, há mais de quatro milênios. A astronomia é um destaque do saber africano. No Quênia, encontram-se, ao lado do Lago Turkana, os restos de um observatório astronômico semelhante a Stonehenge, na Inglaterra. Um sistema de calendário complexo e preciso foi desenvolvido até o primeiro milênio a.C. na África oriental, com base nos cálculos astronômicos. Os dogon, que vivem nas terras do antigo império de Mali, perto da capital universitário de Timbuktu, detêm uma concepção moderna do universo e um conceito extremamente complexo da astronomia. Desde há seis séculos, eles já conheciam o sistema solar, a Via Láctea com sua estrutura espiral, as luas de Júpiter, e os anéis de Saturno. Sabiam da natureza deserta e infecunda da lua, e muito antes que o ocidente conseguisse observá-lo com a ajuda de sofisticados aparelhos, conheciam o pequenino satélite da estrela Sírio, o Sírio B, invisível ao olho nu. Denominavam-no PoTolo, e desenhavam, com exata precisão, a sua órbita elítica em torno de Sírio. Projetaram corretamente a sua trajetória até o ano 1990, em desenhos que conferem precisamente com o curso projetado pela astronomia moderna.
No campo da metalurgia, há vários exemplos como o dos haya, povo de fala banta habitante de uma região de Tanzânia perto do lago Vitória. Há dois mil anos, produziam aço em fornos que atingiam temperaturas bem mais altas do que fossem capazes os fornos europeus até o século XIX. Com base na tradição oral, a antiga tecnologia de fundição foi reproduzida fisicamente, confirmando sua eficácia. Monomatapa, em Zimbábue, é outro exemplo da tecnologia aplicada na África antiga. Capital de um império que durou trezentos anos, sua construção significa uma verdadeira façanha de engenharia, encerrando uma cidade murada de dez mil habitantes. Estudiosos atribuíram sua construção a povos exógenos à África, e até a extraterrestres. Entretanto, o esforço de negar à África a sua autoria foi em vão, e este se agrega a outros incontáveis exemplos do desenvolvimento tecnológico na África tradicional.

Aspectos antigos da questão de gênero


Como observamos no início, o racismo e o patriarcalismo se cruzam numa dinâmica de interação e dependência mútua. A crítica à dominação racial se entrelaça com a crítica ao patriarcalismo. Cheikh Anta Diop mostra que um dos principais elos a unir as culturas pré-coloniais da África é a organização social matrilinear, ou seja, aquela em que a ancestralidade é traçada a partir da mãe e, ao contrário das sociedades patriarcais, a mulher exerce direitos como o de herdar e ser proprietária. A noção da evolução universal postula que todos os povos humanos avançam desde o estágio da "horda primitiva" e as fases de matriarcalismo e matrilinearidade (também "primitivas"), até atingir o ápice do desenvolvimento, estágio da luz: o patriarcalismo. Diop analisa o viés eurocentrista dessa teoria, sua falta de sustentação empírica e seu embasamento na distorção dos dados. O chamado "estágio primitivo" da matrilinearidade caracterizava algumas das sociedades mais adiantadas e altamente organizadas da história, como as do Egito e do império de Gana. Nelas, a mulher protagonizava a organização jurídica, econômica, social e política. Indaga Diop, contestando a teoria evolucionista: qual a sociedade mais plenamente desenvolvida - a que nega à metade de sua população a plena condição humana, ou a que reconhece e estimula em todos a sua capacidade de realização e contribuição à vida coletiva? No caso do Egito antigo, a partilha do poder no âmbito político e religioso vem desde os tempos míticos. O primeiro soberano e deus, Osíris, governa em conjunto com sua irmã Ísis, dona do conhecimento da agricultura que o transmitiu à humanidade. Assassinado, Osíris vê seu corpo despedaçado e os pedaços espalhados pelos quatro cantos do mundo. Ísis reconstitui o corpodo irmão e o ressuscita. Ela ensina ao povo a filosofia do Ma'at - justiça, verdade e direito, matriz ética da nação. As mulheres governantes são várias no Egito e na África. Cleópatra defendeu a soberania de sue país frente ao maior poder imperialista que o mundo conhecera. As rainhas-mães africanas se estabelecem na antiga Núbia com a linhagem das Candaces, que reinavam por direito próprio e não na qualidade de esposas, exercendo o poder civil e militar. Angola nos dá o exemplo da Rainha N'Zinha, contemporânea de Zumbi que resistiu aos dominadores portugueses e holandeses. Gana se orgulha da rainha Yaa Asantewaa, que liderou a guerra dos Asante contra o domínio inglês. Esses exemplos confirmam uma tradição que nasce de profundas raízes histórico-culturais: o sistema social e político matrilinear que define, nos seus primórdios, o ambiente social africana.
Aí encontramos a origem histórica da mulher Oya que Mãe Stella descreveu com tanta eloqüência e que informa a nova imagem da mulher negra brasileira, contrastada à Mãe Preta da sociedade escravista. A antiga civilização africana conta com mulheres soberanas e propicia a partilha do poder entre os sexos. A Mãe África é a fonte dessa força feminina guerreira. Em outra ocasião, talvez, poderemos visitar a influência dessa civilização sobre outros povos e sociedades do mundo antigo desde a Europa até o leste da Ásia e as Américas, outra face da fecundidade da Mãe África.


Elisa Larkin Nascimento Doutora em psicologia pela USP e mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova Iorque. Ajudou a fundar o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Entre outros títulos, é autora de Pan-africanismo na América do Sul (1981), A África na escola brasileira (1991), Sankofa: Resgate da cultura afro-brasileira, 2 vs. (1994), Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira (1996) e O sortilégio da cor: Raça, Gênero e Identidade no Brasil (tese de doutorado, Instituto de Psicologia da USP, Editora Summus/ Selo Negro, 2003).

Fonte: www.casadeculturadamulhernegra.org.br/

Estado-nação, identidade-para-o-mercado e representações de nação

Igor José de Renó Machado2
Professor do Departamento de Ciências Sociais - UFSCar



RESUMO
Este artigo se propõe a explorar o conceito de identidade-para-o-mercado, criado a partir das idéias de Jameson, contidas em seu livro Pós-modernismo: a lógica cultural no capitalismo tardio, e explorado por meio de reflexões que remetem às questões, da minha pesquisa de doutorado, sobre a imigração brasileira no Porto. Apoiado nessa perspectiva, pode-se verificar o papel central do Estado-nação na produção e articulação de identidades-para-o-mercado e de imagens identitárias de fácil consumo num mercado global.
Palavras-chave: identidade, pós-modernismo, imigrações internacionais, Estado-nação.


Introdução
A intenção deste artigo é, primeiramente, relacionar as idéias de Jameson (1996) sobre o pastiche ou simulacro da historicidade, características, para ele, de uma forma pós-moderna de cultura do capitalismo tardio, ao que chamarei de pastiche (ou simulacro) da identidade na mesma cultura pós-moderna, a identidade-para-o-mercado. Estabelecerei uma relação entre suas idéias sobre a falta de profundidade atual da percepção da história com processos que considero semelhantes na constituição das identidades (nacionais, étnicas) no mundo de hoje. Como exemplo de análise, recorrerei à situação dos imigrantes brasileiros em Portugal e ao processo de construção de identidades-para-o-mercado. Veremos que as representações de nação, tanto de Portugal como do Brasil, são fundamentais no desenvolvimento desse processo.
Também compararei a identidade-para-o-mercado com o que Said (1990) chamou de orientalismo, como exemplo do fenômeno do simulacro no mundo pós-moderno. Como primeira conclusão, refletiremos rapidamente sobre o papel do Estado-nação na sua conexão e responsabilidade no desenvolvimento das identidades-para-o-mercado.

1. Jameson e o pastiche da historicidade

Para analisar os processos de essencialização de identidade, elaboro o conceito de identidade-para-o-mercado com base nas idéias de Jameson, para quem a forma cultural do capitalismo tardio é a pós-modernidade. Segundo esse autor, o pós-modernismo seria marcado pelo pastiche da historicidade e deve ser visto como "a dominante cultural da lógica do capitalismo tardio" (1996, p. 72). Nesse sentido, ele afirma que a falta de profundidade, a superficialidade, um achatamento da percepção da história e uma cultura da imagem e do simulacro são constitutivos do pós-moderno. Proponho que o capitalismo tardio seja também marcado pelo "pastiche da identidade", que replicaria todas essas características do capitalismo tardio.
A fragmentação da pós-modernidade é marcada por um mundo "transformado em mera imagem de si próprio" (idem, p. 45). Nesse contexto, o passado é transformado em uma grande coleção de imagens, um "simulacro fotográfico". Esse repertório pode ser relacionado ao que Huyssen (1991) também imaginou como "acervo pós-moderno", embora buscasse nisso um lado positivo não encontrado em Jameson, para quem o simulacro esmaece a percepção da historicidade. Essa "lógica do simulacro, com sua transformação de novas realidades em imagens de televisão, faz muito mais do que meramente replicar a lógica do capitalismo tardio: ela a reforça e a intensifica" (Jameson, 1996, p. 72). Assim, vivemos uma "forma cultural de vício da imagem que, ao transformar o passado em uma miragem visual, em estereótipos, ou textos, abole, efetivamente, qualquer sentido prático do futuro e de um projeto coletivo" (idem, p. 72-3).
Esse é o raciocínio básico, o qual chamarei de "falta de historicidade", para relacioná-lo a uma semelhante "falta de historicidade" da identidade na pós-modernidade, ou seja, no capitalismo tardio3. Proponho uma ligação entre a falta de historicidade, como definida por Jameson, e a produção de culturas objetivadas4 no capitalismo tardio. O "pastiche" da história, ou seja, a própria falta de capacidade de representar a história, característico do capitalismo tardio, pode ser relacionado ao "pastiche" da identidade em sistemas capitalistas, que se torna cada vez mais solidificada, essencializada e objetivada, sem história própria, reduzida a imagens de fácil consumo para a indústria cultural. A esse pastiche de identidade dou o nome de identidade-para-o-mercado.
Essas identidades são formadas e construídas em processos semelhantes àqueles do simulacro da percepção da historicidade, por meio da qual pedaços desconectados e imagens recortadas de um passado nostálgico são montados como material espiritual para essas mesmas identidades (pedaços que são, da mesma forma, imagens vazias do passado, desprovidas de profundidade histórica). Verificamos esses processos, por exemplo, na justificação da Guerra do Golfo, apoiados na imagem e no estereótipo do árabe terrorista – recentemente inflados pelo ataque às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001 – ou até na produção de desenhos animados como Aladim, onde a essência da diferença, efetivamente, vende. A atualidade da análise de Said (1990), por exemplo, reflete-se na adequação dessa criação do Oriente a novos ambientes pós-modernos, que se utilizam das imagens e essências elaboradas, como modelos, para moldar sentimentos dos mais variados, produzindo imagens e idéias da identidade sem profundidade.
Para melhor demonstrar a eficiência e efetividade da identidade-para-o-mercado, pode-se lembrar que na Copa do Mundo de futebol de 1998, na França, o Brasil pôde ser reduzido a um cartaz que traduziria toda sua cultura5. Em geral, competições como essas são estimulantes de "imagens de identidade" com grande impacto e circulação, e com a conseqüente solidificação de diferenças e a essencialização de características eternizadas e petrificadas em imagens de apelo comercial. Impera a linguagem visual, que nos permite esquecer toda a história que fez e faz que algumas imagens sejam (não que representem) as próprias identidades que deveriam simbolizar. Nesse sentido, isto é, no da solidificação de imagens da identidade, podemos entender a identidade-para-o-mercado e a crise da historicidade, ambas, como parte do mesmo processo, chamado por Jameson de "dominante da lógica cultural do capitalismo tardio".
A especificidade da identidade-para-o-mercado é que ocorre no mercado, para o mercado e através do mercado. A identificação do sujeito com os modos de vida coletivos (as visões de mundo) é mediada pelo mercado. Isso pode incluir processos de mercantilização de identidade – como os descritos por Handler (1984), Herzfeld (1997) e Machado (2003) – ou não. O mais comum é a ocorrência da identidade mercantilizada, ou seja, de indivíduos que se definem pelo acesso ao consumo de determinados bens. Outra forma é transformar uma identidade em sustento econômico. Vender e sustentar-se no mercado de trabalho pelas imagens de identidade é uma forma de identidade-para-o-mercado, que não exclui outras. O fato é que os brasileiros mercantilizam a identidade, mas o processo de identificação dá-se não por causa da venda, e sim por mecanismos internos de valorização de novas formas de classificação (a definição das categorias que constroem o mundo), que têm relação íntima com a venda –são impulsionadas por ela –, mas vão além delas.
As novas categorias de definição do que é o "brasileiro" na cidade do Porto são características de uma identidade-para-o-mercado: essencializadas, desconectadas, sem noção de historicidade, reduzidas a imagens vazias. Isso só pode acontecer numa configuração social – o capitalismo tardio. A identidade-para-o-mercado é um conceito que descreve uma forma de identificação hegemônica no capitalismo atual – no sentido gramsciano da construção de um consenso útil aos dominantes6. Também é uma forma privilegiada de identidade nos atuais embates no espaço social, seguindo o conceito de Bourdieu (1989), ou seja, são as formas predominantes de construção da realidade determinadas pela influência de quem tem capital social, cultural e simbólico7. A mercantilização da identidade é um processo empírico que acontece em diferentes contextos históricos e sociais, não um conceito. A especificidade do processo que descrevo entre os brasileiros é que eles "mercantilizam" uma identidade-para-o-mercado, um processo que só pode acontecer no capitalismo tardio.
A identidade-para-o-mercado, mais do que uma forma cultural do capitalismo tardio, é um mecanismo importante para a construção de identidades sob a égide do capital financeiro. Para além disso, é uma das variáveis do campo social que permitem a perpetuação do sistema capitalista. Através da identidade-para-o-mercado, o capital perpetua um consenso fundamental, pois o motor de identificação de indivíduos passa necessariamente pelo mercado. Demonstro esses argumentos com o exemplo retirado de minha pesquisa de campo no Porto, Portugal, entre imigrantes brasileiros, na qual vemos "em ação" a essencialização, petrificação e mercantilização cultural, que nomeio identidade-para-o-mercado. Procurarei demonstrar por meio de uma rápida narrativa como essas imagens de identidade são constituintes dos sentimentos e das identificações de pessoas no capitalismo tardio.

2. Um caso de identidade-para-o-mercado

As reflexões apresentadas neste artigo são baseadas no trabalho de campo, realizado entre março e outubro de 2000, para a feitura da tese de doutorado (Machado, 2003), além de em duas outras estadias mais rápidas, a primeira em janeiro e fevereiro de 1998 e a segunda em fevereiro de 2002. Meu recorte espacial circunscreveu uma grande área, uma vez que os brasileiros não se agrupam em lugares específicos da cidade. O centro da pesquisa foi a cidade do Porto, onde se concentra grande parte das atividades econômicas dos brasileiros, mas os imigrantes moram nas cidades à volta, que poderíamos chamar de "grande Porto". São elas: Matosinhos, Leça da Palmeira, Vila Nova de Gaia, Maia, Gondomar, Valongo.
O fato de estarem espalhados por lugares dispersos e, muitas vezes, longe uns dos outros facilita, ou potencializa, o papel de bares e restaurantes brasileiros como os pontos de encontro privilegiados, os lugares onde brasileiros travam conhecimento uns com os outros e estreitam suas redes de relações. Os bares e restaurantes, onde uma parte considerável da pesquisa foi realizada, são, de certa forma, os nós de redes sociais que se espalham não uniformemente pela grande Porto e também por cidades do interior do norte de Portugal. Conectam, num mesmo ambiente, várias redes de trabalhadores de diversos lugares, formando um mapa do mundo do trabalho de imigrantes brasileiros no Porto8.
O alvo da pesquisa foi majoritariamente os imigrantes "pobres", buscando um contraste em relação à imagem vigente na época que pressupunha uma imigração brasileira altamente qualificada e bem remunerada9. Essa imagem era derivada dos números oficiais da imigração em Portugal. Mas essas afirmações eram baseadas em dados que apresentavam limitações e ofereciam um quadro que poderia ser distorcido10. A imigração brasileira no Porto não é predominantemente de classe média, como ainda se imagina em reportagens de televisão no Brasil e mesmo em algumas mídias portuguesas. Ao contrário, a maioria das pessoas é pobre e com baixa formação escolar.
O universo mais significativo da vida cotidiana dos imigrantes é o do trabalho. Este ou a busca de um emprego, de certa forma, confere um nexo central às ações e relações dos imigrantes. As relações de amizade em geral se formam nos locais de trabalho; a descoberta dos bares noturnos para os imigrantes também é apresentada aos recém-chegados pelos companheiros de trabalho mais antigos; a busca de emprego se faz através das relações de amigos ou conhecidos de conhecidos que trabalham em algum lugar onde é possível arranjar serviço; as brincadeiras nos churrascos e nas confraternizações se referem aos acontecimentos dos locais de trabalho etc.
Por outro lado, a relação com a sociedade portuguesa também passa pelo local de trabalho: os primeiros patrões portugueses, as primeiras experiências de exploração, a percepção da fragilidade da situação de ilegalidade, o contato com fregueses portugueses (no caso dos que trabalham como atendentes). O trabalho, motivo primeiro da imigração, como atestam várias entrevistas que realizei entre os imigrantes, é uma preocupação onipresente para a grande maioria dos brasileiros com os quais entrei em contato. O universo do trabalho medeia tanto a relação dos imigrantes com a "comunidade brasileira", já instalada no Porto, como com a sociedade portuguesa. É por esse motivo que o cotidiano dos imigrantes tem relações intrínsecas com o universo do trabalho, razão pela qual é importante tentar entender como a experiência do trabalho se articula à construção de uma identidade brasileira específica aos brasileiros imigrantes.
Os trabalhadores brasileiros dirigem-se principalmente para o mercado de atendimento ao público. A hotelaria ainda era, em 2000, a melhor fonte de empregos, principalmente por uma suposta "vantagem estrutural" dos brasileiros: eles têm fama de festivos, simpáticos e, além disso, falam português. Essa "fama" garante espaço no mercado e determinadas características são esperadas deles. As principais são a alegria, simpatia e cordialidade. Acreditando que os brasileiros são portadores atávicos de uma série de características, os empregadores portugueses procuram por estes imigrantes para determinados trabalhos. É por isso que o "atendimento em geral" era a grande fonte de emprego para brasileiros na cidade do Porto. Muitos trabalhavam como garçons, vendedores de lojas, representantes de vendas, músicos. De certa forma, esse emigrante em Portugal é um entretainer. O papel do entretainer delegado ao brasileiro não é, contudo, isento de conotações ideológicas: o processo que se desenrola é o de uma subordinação sistemática do brasileiro aos estereótipos que rotulam todos eles como pessoas alegres e simpáticas.
Os brasileiros passam pelo que chamo de processo de exotização. Esse processo é um fenômeno social de efetivação dos estereótipos – tem relação íntima com a sua produção – mas vai além da mera constatação da sua existência. Para além de ser submetida ao "orientalismo" (Said, 1990), a práxis da população brasileira estereotipada se relaciona com as imagens constituídas do imaginário hegemônico português de uma forma ativa. Ou seja, os imigrantes brasileiros não apenas estão sujeitos à construção das imagens estereotipadas por determinados agentes de poder, mas também são sujeitos ativos da exotização. Assim, adaptar-se mais eficientemente aos estereótipos portugueses pode conferir maior poder a determinadas pessoas. Quero indicar que a forma como os brasileiros na cidade do Porto organizam sua "vida coletiva" permite entender como eles progressivamente vão se tornando "exóticos", no sentido determinado por um universo simbólico português abarrotado de imagens sobre os brasileiros.
O mercado de trabalho é fundamental na análise da construção da organização social dos brasileiros no Porto, como também na construção de identidades essencializadas referentes a imagens estereotipadas sobre o Brasil11. A determinação de um lugar no mercado de trabalho para os brasileiros tem implicações tanto na organização da vida como na construção de identidades. Encaixar-se no estereótipo português sobre o brasileiro facilita a vida do imigrante, que consegue seu emprego mais rapidamente. Por outro lado, a imagem que o imigrante desenvolve como a do "autêntico brasileiro" passa a ser a imagem exotizada. Num movimento coletivo de exotização, as percepções sobre a identidade brasileira começaram a se aproximar dos estereótipos portugueses. Os estereótipos "ganharam vida", e os brasileiros viraram a imagem que deles esperavam os portugueses. Tendo em vista que relações de poder entre os imigrantes passam, entre outras coisas, pelo controle de uma larga rede de possíveis empregadores portugueses, os líderes acabam sendo alguns entre os que podem ser acionados em casos de busca de emprego. Esses líderes são brasileiros que, tendo se encaixado nas imagens correntes sobre o Brasil, conseguiram inserir-se solidamente no mercado de trabalho12. Tornaram-se intermediadores, cuja situação proporciona acúmulo de poder entre os demais imigrantes brasileiros.
Um processo fundamental para entender o cotidiano dos brasileiros é o jogo de centralidades. Chamo de "jogo da centralidade" a luta, entre brasileiros, para estabelecer diferenciações entre si. O "estar no mundo" de imigrantes brasileiros é marcado por uma aproximação a um "centro". No caso dos brasileiros no Porto a luta é para se parecer com uma imagem de identidade brasileira baseada na idéia estereotipada que vige em Portugal e permite a existência de um lugar específico no mercado de trabalho. A questão é, então, quem é mais ou menos brasileiro. O jogo da centralidade é uma constante avaliação, por cada imigrante, da sua própria centralidade em relação aos demais imigrantes. É um ato complexo de classificação que recorre a diferentes variáveis. Os brasileiros se aproximam ao "centro" da brasilidade por rotas diferentes. A diferenciação é um instrumento de poder que serve para distanciar os outros do centro das representações. A elaboração de fronteiras, simbólicas ou não, por parte de imigrantes, não é um exercício de incluir-se num grupo, mas de excluir outros. Ou seja, os limites na aproximação a essa imagem central são impostos aos outros, na esperança de ser mais central por afastá-los. Chamo de "centralidade" essa idéia que descreve um processo.
Os termos "brasilidade", "abrasileirar" são usados no sentido específico do jogo da centralidade: ou seja, "abrasileira-se" aquele que consegue alguma legitimidade no sentido das determinações do "centro exemplar", que aqui relaciono com uma "identidade-para-o-mercado". O centro exemplar é a coleção de imagens estereotipadas sobre o Brasil (samba, futebol, sexualidade e mestiçagem) que regem a conduta das pessoas envolvidas nesse processo. O fato é que, quando um brasileiro se demonstra mais próximo da identidade-para-o-mercado, ele se torna mais central. É bom frisar que a idéia de "falsidade", que ronda a reprodução das imagens essencializadas, é uma idéia "nativa" e faz parte do próprio jogo da centralidade. Embora seja o jogo da centralidade que organiza uma "filosofia nativa" em Portugal - por meio do modelo ideal essencializado da brasilidade -, a própria possibilidade de falsidade implícita nesta filosofia é um dos conceitos nativos que fundamenta o julgamento da centralidade. É por esse motivo que me sinto à vontade em lidar com a produção da identidade entre os brasileiros com o termo "para-o-mercado", pois é uma forma de relação com a suposta essência que está inscrita nos modos de vida destas pessoas.
Vale lembrar que o jogo da centralidade envolve a dinâmica organização do cotidiano e das disputas políticas entre os brasileiros no Porto. O prestígio e as posições de poder são centralizados por aqueles que ao menos aparentam ter a vida considerada, perante os demais brasileiros, como próxima ao modelo ideal. Esse modelo corresponde a uma identidade-para-o-mercado, uma identidade pautada pela solidificação de imagens estereotipadas sobre a essência do brasileiro. Em suas ações, os brasileiros sempre procuram uma forma de construir para si mesmos alguma centralidade que seja reconhecida pelos demais.
O mecanismo básico de abrasileiramento é a forma de ocupação no mercado de trabalho. Ou seja, participar do "mercado da alegria" confere centralidade aos brasileiros. Isso acontece, entre outras coisas, porque o trabalho nesse mercado depende da representação portuguesa sobre o Brasil e de um reconhecimento de brasilidade por parte do empregador. Ou seja, é conferida uma brasilidade compulsória aos participantes desse mercado simplesmente porque os portugueses acreditam que os brasileiros são naturalmente preparados para estas atividades. O reconhecimento de brasilidade, por parte do mercado de trabalho português, é mais um elemento centralizador no jogo da centralidade.
O funcionamento do jogo da centralidade é estruturante da vida social desses trabalhadores e é disputado de várias maneiras: pela valorização de origens regionais ou de algumas atividades como o futebol, a música, a capoeira etc., pela negociação do acesso às redes familiares portuguesas e às oportunidades de emprego. Um dos mecanismos do jogo é a articulação de uma memória mítica que legitima os principais intermediários brasileiros. O jogo da centralidade é o centro nevrálgico dos circuitos de reciprocidade entre os imigrantes, funcionando como um código moral que dá sustentabilidade ao sistema e, ao mesmo tempo, como instrumento político das lutas entre os imigrantes.
É preciso fazer a ressalva que havia (e há) uma fonte dupla de produção dos estereótipos que "viraram realidade" na experiência dos imigrantes brasileiros pobres do Porto: o próprio Estado brasileiro, preocupado em vender a imagem do tropical exótico e da nação mestiça – para fins de turismo e solidificação da identidade nacional –, e a sociedade portuguesa que tem, desde o período colonial, constantemente reelaborado imagens sobre o Brasil. Em meu trabalho13 deixei de lado a produção de estereótipos sobre os brasileiros fabricada pelo próprio Estado nacional e pela sociedade civil brasileira, dedicando especial atenção à segunda das fontes, a sociedade portuguesa, a fim de analisar as especificidades dos processos de exotização em Portugal. Acredito que, embora possam ser vislumbrados em outros contextos nacionais, tais processos acontecem sempre de forma diferenciada, segundo as sociedades de recepção dos imigrantes.
O que esse processo demonstra é como o momento atual é marcado por movimentos de essencialização da identidade, quando os símbolos e as representações desconexos de um discurso nacional – ou das representações da ex-metrópole – tornam-se o norte e o nexo da vida de pessoas em variados contextos. Um dos mecanismos de reforço da identidade-para-o-mercado é justamente o espaço hierarquizado do mercado de trabalho, no caso da migração. O exemplo dos brasileiros no Porto indica como determinadas pressuposições simbólicas impõem comportamentos a sujeitos como resultado de processos complexos de exotização, nos quais os sujeitos são ao mesmo tempo vítimas e agentes de uma "subordinação ativa".
Em Portugal, o exotismo é imposto e passa a ser a verdade e a ser compartilhado inclusive pelos brasileiros. Esse discurso de poder e criação de imagens pode ser visto "em plena ação" na forma como os imigrantes brasileiros, portugueses retornados e luso-brasileiros, assumem certas visões exóticas a respeito do Brasil, por um lado e, por outro, na forma como a imprensa portuguesa trata o Brasil e seus imigrantes, como um pedaço da exótica ex-colônia em conflito com cidadãos europeus (superiores, portanto), disputando postos no mercado de trabalho e contribuindo para uma "invasão brasileira" (negativa) em Portugal.
Pode-se identificar, grosso modo, uma forma hegemônica de representação e construção da identidade brasileira entre os imigrantes brasileiros em Portugal. Pode-se dizer que objetivam a cultura brasileira (Handler, 1984). Essa representação é produzida principalmente entre aqueles com profissões relacionadas à noite e aos produtos culturais, ou a bens simbólicos, que são vendidos aos consumidores portugueses juntamente com uma idéia corrente sobre quem são os brasileiros e sobre o Brasil, uma apropriação do discurso hegemônico do exotismo. Esses são cantores(as), músicos, professores(as) de ginástica e de capoeira, donos(as) de bares brasileiros, garçons etc. Há ainda as profissionais do sexo, que vendem também estereótipos e são numerosas no Porto.
O discurso dos "vendedores da cultura exótica" prevalece entre os imigrantes, além de tudo por encontrar reflexo na visão/imagem hegemônica estereotipada sobre o Brasil. Apesar das diferenças entre os brasileiros imigrantes em Portugal, no que tange às suas origens, podemos ver um processo de construção de uma nova forma cultural, baseada na identidade-para-o-mercado. Essa passa a ser o denominador comum entre os brasileiros e o centro das construções identitárias no Porto. Vemos que, como afirma Sahlins (1990, p. 9), a cultura é colocada em risco na ação e, neste caso, submetida a transformações14. Assim, vemos que as imagens-síntese da identidade brasileira (como a do cartaz-essência) são ponto de partida para a própria inserção no mundo desses imigrantes brasileiros, que representam sua vida cotidiana de acordo com elas. Tornam essas imagens sem profundidade na forma de sobreviver, como um capital cultural que é automaticamente conferido se se adequar às imagens hegemônicas. Assim é que muitos brasileiros acabam se tornando brasileiros "autênticos" apenas quando chegam ao Porto. A identidade-para-o-mercado cria realidades e comportamentos, ela gera pessoas que se identificam com suas imagens esvaziadas e estereotipadas.

3. O Estado-nação e as imagens de identidade

Chegamos agora a um ponto onde fica evidente a necessidade de considerarmos o papel do Estado-nação na produção, na reprodução e no apagamento dessas identidades-para-o-mercado, já que é no discurso oficial que muitas dessas imagens são reforçadas, esquecidas ou inventadas. Já anunciando uma conclusão parcial, vemos que se o papel do Estado-nação se altera no contexto pós-moderno, ele não deixa de ser relevante, se não por outros motivos, apenas por ser o centro de disputas e lutas políticas em torno do qual se constroem, ainda hoje, imagens de identidade, ou seja, os próprios discursos nacionais. Fonte, assim, entre outras conseqüências, de material simbólico para inserção na indústria cultural.
Para ilustrar este argumento, acompanharei, novamente, a relação entre Brasil e Portugal, onde podemos ver como os Estados se empenham na construção de imagens de identidade e como se dão algumas disputas nesse terreno. Vejo esse imaginário hegemônico como produzido num encontro colonial e depois pós-colonial - no sentido dado por Dirlik (1997). Embora apoiado na análise de Said, baseio-me no que Herzfeld chamou de "practical orientalism"15. Também levo em consideração o que Fox (1992, p. 145-52) chamou de affirmative orientalism, referindo-se à possibilidade de o orientalismo servir de base a contestações políticas dos próprios "orientais", como no caso de Ghandi.
É essa percepção de um orientalismo "prático", para além da perspectiva mais textual de Said (um professor de literatura comparada), que permite que entendamos a produção de imagens de identidade, de identidades-para-o-mercado, como fruto de disputas políticas em andamento, nas quais o Estado-nação tem grande importância. Entretanto, o papel do Estado-nação tem sido alvo de dúvidas, e alguns autores freqüentemente afirmam que sua importância tem sido diminuída por meio do avanço das culturas globais. Appadurai, por exemplo, afirma que "we are in process of moving to a global order in which the nation-state has become obsolete and other formation for allegiance and identity have taken its place" (1994, p. 421). Ianni (1996, p. 17) também afirma a redução da soberania do Estado-nação. Outros autores pretendem entender os fluxos de significados e objetos materiais num esforço de descrição de uma "cultura transnacional", o que diminuiria a autonomia do Estado-nação (Appadurai & Breckenridge, 1988; Hannerz, 1997).
As teorias do sistema mundial, por sua vez, preocupam-se com a formulação de idéias sobre a "dimensão cultural" da globalização. Hannerz (1994) fala em culturas globais, Appadurai (1994) atenta para a fragmentação e disjunção de processos culturais, Featherstone (1994) analisa processos culturais, enquanto Friedman (1994) trata de culturas globais específicas (como as de consumo). Na verdade, são várias teorias do sistema mundial, cada qual com ênfases diferentes em diversos aspectos, mas todas acentuam a diminuição da importância do Estado-nação. No entanto, considero que a importância do Estado-nação na definição ou mesmo no debate e na referência a essas culturas desterritorializadas continua efetiva. Também não cabe aqui discutir, apenas indicar, que talvez as velhas identidades nacionais continuem com seu papel hegemônico na arregimentação dos sentimentos de identidade.
Temos visto que o Estado-nação português é fundamental na produção de identidade-para-o-mercado de brasileiros imigrantes. Foi o Estado que perpetuou imagens sobre o Brasil por meio de ideologias oficiais, como o luso-tropicalismo português, analisado por Castelo (1998)16. Essas imagens coloniais foram reelaboradas no novo contexto social português pós-União Européia. Mas também outra série de ideologias do Estado balizam a produção de identidades no Portugal atual, e elas se referem ao que podemos chamar de lusofonia.
No caso específico do Brasil e de Portugal, ao tratarmos da relação entre continuidades e descontinuidades entre ex-colônia e ex-metrópole, entre discursos de Estado e invenção de similaridades (Feldman-Bianco, 2001a), da produção de discursos hegemônicos, que modelam a consciência de brasileiros, adentramos num campo discursivo que alguns autores (Feldman-Bianco, 1996; Almeida, 1998; Leal, 1998; Santos, 1996; Santos 1994) têm tratado como lusofonia (a construção desses discursos trocados entre países de língua portuguesa). Essa discussão levanta questões relacionadas ao papel do Estado-nação no mundo atual.
O ingresso de Portugal na Comunidade Européia trouxe conseqüências no que se refere à entrada de imigrantes em Portugal. Como afirma Feldman-Bianco:
Portugal began to be perceived by citizens of its former overseas extensions as an open gate to Europe. Hence, in addiction to receiving growing numbers of returning migrants, the post-colonial state was faced with an increasing influx of immigrants originally from the (now) independents nations of "Portuguese Africa" as well as Brazil. (1996, p. 31)
Em contradição com o discurso da irmandade, Portugal tem estabelecido leis cada vez mais duras de restrição à entrada de imigrantes. Essas medidas estão em sintonia com as determinações européias, muito mais do que com a "imaginação de centro" portuguesa.
Por outro lado, acentuando a importância dos discursos oficias do Estado e de sua relação com diferentes populações, Feldman-Bianco (1996, 2001a e 2001b) e Santos (1996) demonstram como a situação dos migrantes brasileiros em Portugal é ambígua. Lideranças migrantes, formadas por brasileiros, luso-brasileiros e portugueses retornados, exploram os discursos oficiais do Estado português e da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que reafirmam a irmandade entre os países de língua portuguesa. A própria Comunidade dos Países de Língua Portuguesa permite aos migrantes reivindicar direitos com base na irmandade entre ex-colonizador e ex-colônias. Afinal, se a "pátria é a língua", todos os migrantes (somando o caso dos africanos) têm o direito à "cidadania da língua".
Como demonstra Santos (1996), o discurso da mestiçagem e o uso da língua são referências na construção das diferenças entre brasileiros e portugueses. Os brasileiros, imaginados nas páginas da imprensa imigrante, são aqueles que têm "ginga" e falam de uma forma diferente. Temos o reforço dos estereótipos/imagens do discurso hegemônico. As estratégias de construção de diferenças passam pelos usos da língua, as diferenças a partir das semelhanças (Hall, 1996). Também as permanências são fundamentais na construção da diferença, por meio da importância do discurso da mestiçagem (que paradoxalmente vem sendo apropriado por discursos oficiais portugueses, os quais reconstroem o imaginário de um país "entre" a Europa e o Atlântico). Estamos lidando, dessa forma, com a criação ou reprodução de ideologias nacionalistas (Fox, 1990) que procuram reinventar a centralidade portuguesa em algum nível. Ou seja, podemos ver, por meio desse exemplo, o papel dos Estados-nação em centralizar o embate em torno das construções (imagéticas) hegemônicas, em cristalizar as imagens que são o material de construção de identidades-para-o-mercado.
Essa conjuntura bastante carregada de discursos oficiais contraditórios, discursos nacionalistas (idem) controversos, é alimentada por contradições entre ideologias luso-brasileiras (bases dos discursos de irmandade, por meio da idéia de fronteiras ambíguas), por um lado, e pela crescente subordinação de Portugal às prerrogativas da Comunidade Européia, por outro. Essas ideologias luso-brasileiras foram construídas a partir da obra de Gilberto Freyre e de seu reflexo em alguns autores portugueses, como demonstra Almeida (1998), e estiveram ligadas ao governo salazarista e ao colonialismo tardio de Portugal. O discurso luso-tropical (e a criação de idéias sem profundidade sobre a miscigenação racial) serviu como legitimação da dominação portuguesa nas colônias africanas e influenciou também as relações com o Brasil. Visto como filhos do "gênio português", as colônias e ex-colônias foram narradas a partir dessa ideologia gilbertiana, conferindo-lhes uma posição inferior e "tutelada" (Castelo, 1998).
Tanto como produtor principal de imagens sobre os brasileiros, no caso do Estado imperial português (que durou até 1974), quanto como produtor de um "campo discursivo" no qual as diferenças podem ser organizadas, como é o caso do Estado pós-imperial português17, por meio da lusofonia, vemos que o Estado-nação continua um elemento relevante na arregimentação de sentimentos e na construção de identidades. No caso dos brasileiros atualmente, a resposta às imagens estereotipadas sobre o Brasil18 em Portugal passa pela construção de uma identidade-para-o-mercado, marcada pela relação estrutural com o mercado (tanto o mercado de trabalho na cidade do Porto como o mercado de "consumo cultural" dos portugueses nesta cidade, repletos de imagens sobre o Brasil exótico19).

Comentários finais
Vimos, assim, como o Estado-nação, no caso o português, é central na definição e construção das identidades-para-o-mercado e que, ao redor de suas imposições, se estabelecem lutas políticas de acesso e/ou contestação a essas imagens (como no caso dos imigrantes). Também o diálogo com outras fontes de discursos hegemônicos, patrocinados por outros Estados, como o mito brasileiro da miscigenação racial, é importante para entendermos o desenvolvimento de identidades-para-o-mercado, como ilustra o caso do luso-tropicalismo.
Minha análise considera que o Estado-nação é importante para a reprodução do capitalismo tardio, já que é um grande centro de produção de imagens, um agente de fragmentação da realidade em identidades mediadas pelo mercado. É por meio dele que o capital internacional escapa da regulamentação – pois circula livremente – e é por meio dele que se desenvolve uma indústria cultural que tem como centro a comercialização de imagens essencializadas das identidades espalhadas pelo mundo. Podemos assim identificar o engano de Jameson ao considerar que a fragmentação da pós-modernidade resulta numa incapacidade hegemônica das "classes dominantes":
Se, antes, as idéias de uma classe dominante (ou hegemônica) formavam a ideologia da sociedade burguesa, os países capitalistas avançados são, em nossos dias, o reino da heterogeneidade estilística e discursiva sem norma. Senhores incógnitos continuam a reajustar as estratégias econômicas que limitam nossas vidas, mas não precisam (ou não conseguem) mais impor sua fala. (Jameson, 1996, p. 44)
Pois é justamente o contrário, ou seja, é a própria fragmentação, no caso, a fragmentação imposta por identidades-para-o-mercado, que permite a hegemonia, quando se controla mesmo a circulação das imagens que vão designar essa ou aquela identidade. A luta fica restrita à produção de imagens sem profundidade histórica que, uma vez consolidadas, são inseridas no jogo da indústria cultural, perdendo a capacidade de contestação que em algum momento tiveram. Portanto, quanto mais incógnitos e menos visíveis esses "senhores" mencionados por Jameson, mais hegemônica se torna a reprodução mercantil das identidades rasas espalhadas pelo mundo e menos devem impor sua fala.
Este artigo se propôs a explorar o conceito de identidade-para-o-mercado, além de desenvolver algumas reflexões que remetem às questões de minha pesquisa de doutorado sobre a imigração brasileira no Porto. Para tanto, refleti sobre a especificidade da construção da diferença no capitalismo tardio por meio do conceito de identidade-para-o-mercado. Pensando a identidade-para-o-mercado como uma forma de produção de diferenças exclusivas do capitalismo tardio, devemos entendê-la a partir de um parâmetro cultural capitalista. Sahlins, em Cultura e razão prática, já demonstrava como o capitalismo é um sistema simbólico que, como outro qualquer, é arbitrário. A economia capitalista aparece como um sistema cultural e "a própria forma de existência social da força material é determinada por sua integração no sistema cultural" (Sahlins, 1986, p. 227). Além do mais, os sistemas simbólicos articulam centros de produção simbólica privilegiada, que infletem toda a cultura com base em determinados pressupostos. "Na cultura ocidental, a economia é o locus principal de produção simbólica" (idem) e a produção de mercadorias é um modo privilegiado de produção e transmissão simbólica.
No estágio mais recente do movimento do sistema simbólico do capitalismo (capitalismo tardio), no qual a economia e a produção de valor continuam os loci de produção simbólica privilegiados, a própria cultura está a serviço da valorização, o que podemos ver por meio da construção de identidades-para-o-mercado e de sua relação estrutural com os mercados. Obviamente que poderíamos pensar na análise feita por Sahlins como já antecipando a idéia da produção de mercadorias como reprodutora de "subjetividades", na medida em que elas estabelecem as distinções sociais no capitalismo:
Assim procede a economia, como locus institucional dominante: produz não somente objetos para sujeitos apropriados, como sujeitos para objetos apropriados. (Sahlins, 1986, p. 237)
Demonstrei de que modo se solidificam, na identidade-para-o-mercado, estereótipos criados complexamente no cruzamento de tradições nacionais de representação (no caso, a brasileira e a portuguesa), e como eles são os motores de uma nova subjetividade que se cria ou, em termos antropológicos, de uma nova cultura que surge na experiência imigrante. Uma cultura-para-o-mercado, uma cultura que colabora com a valorização do capital, um resultado das novas formas de estruturação da produção de valor no capitalismo. E, para que tal processo funcione, imagino que o Estado-nação é um instrumento fundamental.

Notas

1 Gostaria de agradecer as valiosas e produtivas sugestões do parecerista anônimo da Revista de Antropologia.
2 Doutor em Ciências Sociais, pelo IFCH/Unicamp; pesquisador do Cemi/Unicamp. E-mail: igorr@ unicamp.br ou igor@power.ufscar.br.
3 Entendo o capitalismo tardio como a configuração atual do sistema capitalista, marcado pela terceira revolução industrial, ou seja, a da microeletrônica (Kurz, 1998), pela produção flexível (Harvey, 1994) e pela hegemonia do capital financeiro.
4 Entendo por culturas objetivadas a produção de artefatos culturais (como filmes cinematográficos) que têm referências em tradições culturais, mas que são produtos feitos para um mercado consumidor ávido pelo "diferente". Mas essas produções objetivadas têm uma "eficácia real", pois produzem efeitos, identificações e até identidades. A idéia de "orientalismo prático" de Herzfeld (1997) permite entender essa faceta das "culturas objetivadas".
5 Sobre a relação entre futebol e nação, ver Machado (2000).
6 O conceito de hegemonia de Gramsci pressupõe a sociedade civil: "Podem-se fixar dois grandes 'planos' superestruturais: o que pode ser chamado de 'sociedade civil' (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como 'privados') e o da 'sociedade política ou Estado', planos que correspondem, respectivamente, à função de 'hegemonia' que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de 'domínio direto' ou de comando, que se expressa no Estado e no governo 'jurídico'. (...) Os intelectuais são os 'prepostos' do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do 'consenso espontâneo' dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce 'historicamente' do prestígio (...) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção (...)" (Gramsci, 2000a, p. 21). A hegemonia é um processo que envolve um "consenso ativo e voluntário" (Gramsci, 2000a, p. 436), liderado pelos intelectuais do grupo dominante, responsável por fazer dos princípios morais da classe dominante os de toda a sociedade. Esse processo exige uma mistura de convencimento e força:
"O exercício 'normal' da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso" (Gramsci, 2000b, p. 95). E esse processo é tanto nacional como internacional: "Toda relação de 'hegemonia' é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais" (Gramsci, 2000a, p. 399).
7 Para Bourdieu, "pode-se representar o mundo social em forma de um espaço (a várias dimensões) construído na base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que actuam no universo social considerado" e os "agentes são assim definidos pelas suas posições relativas neste espaço" (Bourdieu, 1989, p. 133-4). Isto resulta em que "o espaço social e as diferenças que nele se desenham 'espontaneamente' tendem a funcionar simbolicamente como espaços dos estilos de vida (...), isto é, de grupos caracterizados por estilos de vida diferentes" (idem, p. 144). Portanto, os princípios de construção de identidades são fruto de uma lógica política do campo social, resultado da capacidade maior ou menor dos grupos de se definirem e de quais os mecanismos que podem utilizar para o fazerem. A construção da realidade, do mundo social é mediada pelas categorias construídas no espaço social: "Mediante um trabalho de construção desta natureza – que se não faz de uma só vez mas por uma série de aproximações – constroem-se, pouco a pouco, espaços sociais os quais – embora só se ofereçam em forma de relações objectivas muito abstractas e se não possa tocá-los apontando a dedo – são o que constitui toda a realidade do mundo social" (Bourdieu, 1989, p. 30). O princípio de predominância das formas "hegemônicas" de construção das possibilidades de identidade segue a lógica política, pois, aos que estão numa situação desvantajosa, resta apenas aceitar a "regra do jogo" e tentar, através dele, aumentar o próprio capital social: "O princípio do movimento perpétuo que agita o campo (...) reside (...) na própria luta, sendo produzida pelas estruturas constitutivas do campo, reproduz as estruturas e as hierarquias deste. Ele reside nas acções e nas reacções dos agentes que, a menos que se excluam do jogo e caiam no nada, não têm outra escolha a não ser lutar para manterem ou melhorarem a sua posição no campo, quer dizer, para conservarem ou aumentarem o capital específico que só no campo se gera" (idem, p. 85).
8 O Porto continua a ser o segundo maior concentrador de brasileiros em Portugal. Mas, com cerca de 11% dos imigrantes, essa cidade viu menos brasileiros serem legalizados em 2001 do que Faro, por exemplo. Ao contrário da região de Lisboa, o Porto concentra pouca imigração "em português", e apenas os números de guineenses são de alguma relevância, ainda assim menor que os de chineses (Machado, 2003, p. 303). O maior contingente de ilegais no Porto era (embora não tenhamos conhecimento sobre a situação atual) de ucranianos, com 5.510 legalizações em 2001, seguidos de 1.933 legalizações de brasileiros (idem, p. 308).
9 Ver Machado (1997) e Baganha & Góis (1998/1999).
10 Sobre os dados a respeito da imigração em Portugal, Baganha e Góis afirmam que "sabemos extremamente pouco sobre os imigrantes em Portugal, porque a única fonte disponível com consistência interna apresenta sérias limitações, dado que o número de características dos imigrantes, tratadas e divulgadas pelo MAI-SEF, é muito restrito e a sua divulgação sistemática com alguma profundidade só se inicia em 1990" (1998/1999, p. 262). Portanto, continuam os autores: "O que sabemos refere-se sobretudo ao fluxo legal, pelo que é conveniente salvaguardar a hipótese de as características conhecidas serem uma pobre e, muito provavelmente, errônea representação do fluxo imigratório global. Quer os estudos da componente ilegal do fluxo imigratório português noutros períodos históricos, quer a informação disponível sobre as partidas ilegais para a Europa depois da II Guerra Mundial, mostram que o fluxo clandestino é substancialmente diferente do fluxo ilegal" (Baganha & Góis 1998/1999, p. 250).
11 Uma discussão sobre a origem e o desenvolvimento dessas representações, por parte da sociedade portuguesa, é realizada em Machado (2003).
12 Na tese de doutorado (Machado, 2003) demonstro que não é apenas o controle do mercado de trabalho que proporciona mais prestígio e poder, mas que esta é uma das dimensões mais relevantes.
13 Refiro-me à tese de doutorado defendida em 2003 (Machado, 2003).
14 Ao contrário do que afirma Sahlins em outro artigo (1997), mais do que continuidade, a cultura é submetida a transformações nos processos migratórios.
15 Para Herzfeld, "orientalism is more relative and negotiable than appears to be the case in Said's textualist, and descontextualizing, perspective; and it is this property that has led me to generate a more agent-oriented view of it" (1997, p. 96).
16 Obviamente, esse consenso em torno das imagens sobre o Brasil convive com inúmeras reações e visões contrárias na sociedade portuguesa, que não são, entretanto, hegemônicas. A preponderância de determinadas imagens sobre o Brasil não se restringe ao Estado, claro, mas se espalha pela sociedade civil. Mas é inegável que foi o Estado o agente da produção dessa representação hegemônica, como a historiografia de Castelo (1998) o demonstra.
17 A idéia do Estado como organizador de um campo discursivo no qual as lideranças imigrantes podem exigir direitos, desde que inseridos neste campo, foi-me sugerida verbalmente por João de Pina Cabral, durante a realização do trabalho de campo.
18 Margarido (2000) sugere que há uma continuidade entre as imagens do pensamento imperial e a lusofonia, que não passaria de uma reatualização daquelas antigas hierarquias coloniais.
19 Chamo de "consumo cultural do exótico" o espaço de entretenimento para o público português, baseado em representações estereotipadas do Brasil na cidade do Porto, como restaurantes, boates, casas de prostituição, aulas de capoeira, aulas de danças "sensuais" brasileiras (como são anunciadas).

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Retrato de uma ausência: a mídia nos relatos da História política do Brasil


Luís Felipe Miguel Universidade de Brasília


RESUMO

Nos últimos 50 anos, consolidou-se no Brasil uma moderna indústria da comunicação de massas, que é o principal veículo de informação (e entretenimento) de dezenas de milhões de pessoas. Além do impacto cumulativo a longo prazo sobre as representações de mundo de seus consumidores, a mídia foi partícipe direta e importante de episódios de nossa história política. No entanto, as narrativas do período mal tocam nos meios de comunicação. O presente trabalho analisa esta ausên-cia (nas obras de autores como Skidmore, Costa Couto e Fausto) e discute porque historiadores e cientistas políticos ainda se sentem desconfortáveis com a influência política da mídia. Palavras chave: Meios de Comunicação; História Política do Brasil; Democracia; mídia.


Tornou-se lugar-comum dizer que, em nossas sociedades, a mídia é quase onipresente. Somos bombardeados por ela. Só nos últimos 30 anos, a humanidade produziu mais informações do que nos cinco milênios precedentes. Os meios de comunicação alteraram nossa maneira de ver o mundo que nos cerca ¾ um mundo, aliás, que eles ampliaram brutalmente, tanto por meio dos fatos que o jornalismo transmite quanto da experiência vicária proporcionada pelas diferentes formas de arte e entretenimento. O meio dominante (a televisão), em especial, transformou a vida cotidiana, incluindo aspectos tão básicos quanto a gestão do tempo e do espaço (doméstico ou social).
A mídia, categoria ampla e em permanente mutação, que inclui a TV aberta e por assinatura, rádio, jornais, revistas, cinema, indústria fonográfica, internet etc, tornou-se parte integrante da vida dos homens e mulheres contemporâneos ¾ e é um de seus companheiros mais freqüentes. Dados relativos aos Estados Unidos dizem que, em média, cada adulto dedica quase seis horas e meia diárias de atenção à mídia, contra cerca de 14 minutos para a interação interpessoal familiar. No mundo todo, nas sociedades urbanas, o consumo de mídia é uma das duas maiores categorias de atividade, atrás apenas do trabalho. Mas o dispêndio de tempo no trabalho está em declínio, enquanto que, para a mídia, a tendência é oposta.
Nada parece resistir aos meios de comunicação de massa. Ou melhor, quase nada. Não quero dizer, como nas aventuras de Astérix, que os livros de história política do Brasil são a "última aldeia gaulesa" que resiste à influência dos meios, até porque não se trata de resistir a ela, mas de negar tal influência. É notável a maneira pela qual os relatos da nossa história política ignoram, via de regra, a existência da mídia e seu impacto social.
Este artigo possui ambições bastante modestas. Desejo, em primeiro lugar, evidenciar a quase completa ausência da mídia nas narrativas da história política do Brasil, do período de 1930 para cá, ao mesmo tempo indicando porque esta ausência é relevante (ou, o que dá na mesma, porque a presença dos meios de comunicação é importante para se compreender a política). Em seguida,indicarei algumas das possíveis causas desta ausência.
Vou me limitar a obras de caráter mais factual, já que os esforços analíticos podem, justificadamente, privilegiar alguns aspectos em detrimento de outros, obliterando assim, por exemplo, a influência da mídia. E estou referindo-me apenas a livros de história política, já que a história cultural, dos costumes, das mentalidades etc tem sido muito mais sensível aos efeitos dos meios de comunicação na sociedade.
Para evidenciar tal ausência, escolhi quatro livros que estão entre os mais adotados no ambiente acadêmico: Em primeiro lugar, os dois principais livros do brazilianista norte-americano Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo1 e Brasil: de Castelo a Tancredo2, trabalhos sem maior ambição interpretativa, mas muito bem documentadas e que formam, em conjunto, provavelmente a mais lida narrativa da história política do Brasil entre 1930 e 1985.
Depois, o livro de Boris Fausto, História do Brasil3. Trata-se de um manual voltado para o ensino médio e universitário, com a intenção de prover uma informação mais aprofundada do que a fornecida pelos livros-texto tradicionais. A obra parte das civilizações pré-colombianas no Brasil, mas, para os fins deste artigo, interessa apenas o período iniciado pela Revolução de 30.
E, por fim, o livro de Ronaldo Costa Couto, História indiscreta da ditadura e da abertura4, o mais recente de todos. Como o título já indica, a obra ¾ nascida de uma tese de doutoramento ¾ trata apenas do período entre 1964 e 1985. É um exercício de inside History, já que o autor exerceu cargos político-administrativos durante o regime militar, em seguida tornou-se íntimo colaborador do líder oposicionista Tancredo Neves e chegou a ministro de Estado na presidência de José Sarney. Assim, seu relato é alimentado pelo conhecimento direto dos bastidores políticos e, ainda mais, pelos depoimentos inéditos que obteve de vários protagonistas.
Os quatro títulos mencionados não formam, é evidente, uma relação exaustiva, que seria inviável diante dos estreitos limites deste trabalho, mas, creio, são suficientemente representativos. São livros com ambições diferentes, embora todos considerados, pela comunidade acadêmica, como obras historiográficas ao mesmo tempo "sérias" (merecedoras do respeito intelectual dos confrades) e "acessíveis" ao leitor não-especializado (tendo, por isso, impacto na formação de estudantes).

PRESENÇA ESVAZIADA

Demonstrar uma ausência, que é o que pretendo fazer aqui, é algo meio bizarro: é falar do que não é, do que não está. É mais fácil (e útil) apontar episódios nos quais os meios de comunicação exerceram papel significativo e apontar como esta presença é esvaziada. Mas antes, à guisa de ilustração, vale fazer uma contagem de referências à mídia num livro. Escolhi a História do Brasil, de Boris Fausto, mas os números para qualquer um dos outros seriam muito semelhantes.
No livro de Fausto, em cerca de 250 páginas, que cobrem o período entre 1930 e 1989, as referências aos meios de comunicação mal passam de uma dúzia (para ser exato, são 15). E sempre, sem exceção, são secundárias ou anedóticas: a sede do jornal O Globo é depredada após o suicídio de Getúlio, há uma referência lateral a um quadro do humorista Jô Soares na televisão e assim por diante. O poderoso DIP, instrumento de propaganda do Estado Novo, é lembrado em apenas um parágrafo; a Rede Globo também merece uma única citação, em que se reconhece seu papel na legitimação da ditadura de 645. Mas quando faz um capítulo de síntese sobre as "Principais mudanças ocorridas no Brasil entre 1950 e 1980", a extraordinária difusão da mídia nem sequer é lembrada6. O adjetivo "extraordinária" nada tem de exagero: 1950 é o ano zero da TV no Brasil; em 1980, 56,1% dos domicílios brasileiros já possuíam ao menos um televisor, número que chegaria a 71% em 1991.
Há uma última evidência do menosprezo à mídia no livro de Boris Fausto. Num apêndice com notas biográficas sobre cerca de 400 personalidades, os empresários Assis Chateaubriand e Roberto Marinho (donos, respectivamente, dos Diários Associados e da Rede Globo) estão ausentes ¾ embora sejam incluídas figuras relativamente pouco importantes, como os deputados Odilon Braga e Francisco Morato ou o senador Carlos de Campos7.
Mas o impacto da mídia neste período é incontornável. Às vezes, exatamente por estarmos tão imersos em nosso mundo mediatizado, nem nos damos conta das múltiplas conseqüências sociais da presença dos meios de comunicação. O jornal diário, o rádio e, sobretudo, a televisão impõem-se como os instrumentos por excelência da mediação entre seus leitores, ouvintes e espectadores e a realidade circundante. A mídia estrutura novos padrões de ordenação do tempo ("antes do telejornal", "depois da novela") e mesmo do espaço (basta pensar na presença do televisor como objeto dominante na maior parte das salas de estar). Por meio da programação jornalística e de entretenimento, ela transforma, ou amplia, o fluxo de informações entre setores antes relativamente estanques da sociedade, com impacto significativo nas relações entre os gêneros, entre as faixas etárias, e também nas formas da atividade política8.
As novas informações a que os indivíduos têm acesso (e a partir das quais vão se situar no mundo) são filtradas pelos meios de comunicação. Na qualidade de sistemas especializados de busca, organização e distribuição de informações, os órgãos jornalísticos cumprem uma tarefa indispensável à vida das sociedades contemporâneas. Ao mesmo tempo, colocam a esmagadora maioria dos cidadãos na condição de consumidora de informações, dependente do material que recebe da mídia e constrangida à crença na acurácia do trabalho de seus fornecedores9.

A MÍDIA NO BRASIL, DESDE 1930

O período de 1930 para cá é de acelerada e ininterrupta expansão da mídia no Brasil. Dois processos são cruciais: a formação dos Diários Associados, que tem início na década de 20 e atinge seu ápice no final dos anos 50, e a da Rede Globo, após o golpe de 1964. Cada um a seu tempo e com os instrumentos de que dispunham na época (rede de jornais, revistas e rádio ou rede de televisão), ambos são vetores fundamentais do processo de integração nacional. Ainda no início da construção do império Diários Associados de Assis Chateaubriand, seu projeto era visto pelos líderes políticos da época, a começar pelo deputado federal Getúlio Vargas, como ferramenta da união nacional10. Quando, em setembro de 1969, estréia o primeiro telejornal transmitido simultaneamente de Norte a Sul do País (o Jornal Nacional), o processo está próximo de sua conclusão.
A transformação na organização do cotidiano e a "integração nacional" são efeitos cumulativos de longo prazo, com impacto profundo nas diversas esferas da vida social, aí incluída também a política em seu sentido mais restrito. No entanto, os livros analisados concedem pouquíssimo espaço (quando concedem) a estes acontecimentos ¾ e nunca buscam conectá-los com a emergência de novas formas de ação política.
Além desses efeitos de longo prazo, a mídia também teve participação direta importante em momentos específicos da política nacional. Na deflagração da Revolução de 30, por exemplo, Assis Chateaubriand desempenhou um papel destacado. O jornalista ajudou a convencer Antônio Carlos, o governador de Minas Gerais, a apoiar Getúlio Vargas. Mais importante, colocou sua cadeia de jornais (e a importante revista O Cruzeiro) a serviço da Aliança Liberal. Teve papel decisivo na dramatização e amplificação do assassinato de João Pessoa, criando o clima de opinião favorável ao movimento revolucionário. No entanto, Boris Fausto e Thomas Skidmore nem sequer o citam ao narrar o episódio. O obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, onde os gaúchos amarraram seus cavalos, é considerado parte significativa da história. A imprensa que fez da foto dos cavalos no obelisco um emblema da nova ordem política nacional não merece ser citada.
A figura de Chateaubriand, aliás, é apagada da história do Brasil ¾ por inteiro, no caso do livro de Boris Fausto, ou quase, como no relato de Skidmore11. No entanto, respaldado por sua rede de comunicação, ele apoiava revoluções (como a de 30 e a Constitucionalista), influenciava o resultado de eleições, exercia poder de veto sobre a composição de ministérios, arrancava reformas na legislação; por duas vezes, forçou renúncias de parlamentares para conseguir se eleger senador; impôs a si próprio como embaixador do Brasil em Londres. Na fórmula feliz de Bernardo Kucinski, Chateaubriand e os outros barões da imprensa da época eram "chantagistas que se imiscuíam no jogo regular de poder das elites dominantes"12. Extirpar tal chantagem da história política brasileira é deformar sua representação.
E há também a instrumentalização da mídia por parte do poder. A ação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) durante o Estado Novo não foi algo secundário na arquitetura do regime. Foi fundamental para a sua legitimação e estabilidade; mais do que isso, está na raiz do mito criado em torno de Getúlio Vargas, que permaneceu atuante depois da redemocratização e, mesmo, após a morte do caudilho.
Mais significativa ainda é a atuação da mídia, em especial da Rede Globo, durante o regime militar ¾ uma espécie de DIP privado, justamente por isso com maior legitimidade. Embora um estudo mais aprofundado ainda esteja para ser feito, é bastante plausível afirmar que as telenovelas da Globo desempenharam um papel crucial na difusão do mito do milagre brasileiro. Símbolo "vivo" da prosperidade doméstica, o televisor, que passou a estar presente em milhões de lares, mostrava em sua telinha a imagem da prosperidade nacional.
Também é notável a maneira pela qual as obras em foco ignoram a influência da mídia sobre os processos eleitorais. Os jornais, primeiro, e o rádio e a televisão, depois, tornaram-se os principais vetores da imagem pública dos candidatos, com impacto significativo, portanto, sobre seu desempenho nas urnas. Ou mesmo fora delas, como foi o caso da eleição indireta de 1985. Em seu livro, Ronaldo Costa Couto anota, sem maior destaque, o apoio de Roberto Marinho e outros donos de meios de comunicação a Tancredo Neves; mas depois deixa transparecer que a Rede Globo colocou-se a serviço do candidato da Aliança Democrática para gerar o clima de opinião propício. As ações públicas dos líderes aliancistas eram acertadas previamente com a emissora, que garantia a cobertura mais ampla13.
O caso mais evidente do influxo dos meios de comunicação sobre uma eleição é a vitória de Collor, em 1989, que foge do período compreendido pelos quatro livros escolhidos. Collor se projetou como liderança política de envergadura nacional usando uma estratégia de exposição à mídia; o apoio da Rede Globo alavancou sua candidatura; a telenovela de maior sucesso na época, Que rei sou eu?, alimentou a idéia de que só alguém estranho ao establishment político, como Collor dizia ser, poderia salvar o país; a edição do último debate da campanha eleitoral no Jornal Nacional foi, segundo algumas análises, decisiva para sua vitória no segundo turno.
Mas o caso de Collor é o mais notável pelo destaque da mídia também em seu impeachment. A imprensa teve um papel essencial no processo, em especial as revistas Veja e IstoÉ. Na visão de Bernardo Kucinski, elas agiram como representantes de seu leitorado, as classes médias urbanas, que apoiaram Collor, mas se sentiram logradas com o confisco da poupança14. A hipótese precisaria ser confirmada; ela deixa subentendido ¾ e isto é importante ¾ que a mídia não se limita a amplificar iniciativas da elite política, mas age muitas vezes de maneira autônoma na arena política.

RAZÕES DA AUSÊNCIA

Num livro clássico de 1922, Public opinion, Walter Lippmann lamentava o fato de que "a ciência política é ensinada nas faculdades como se os jornais não existissem"15. Quase 80 anos depois, pouca coisa mudou. Em parte, isto talvez possa ser explicado pelos hábitos de pensamento herdados por cientistas e historiadores políticos, acostumados a ver o campo da política tomado apenas por partidos, governos, forças armadas, igreja e, quando muito, sindicatos ¾ ou seja, a política dos séculos 17 a 19, quando os meios de comunicação ainda engatinhavam.
Mais relevante, porém, parece ser o elitismo que subjaz à ausência da mídia. Nas sociedades formalmente democráticas em que vivemos, é corrente a divisão da política em bastidores, as salas secretas em que se fazem os acordos e se tomam as grandes decisões, e palco, o jogo de cena representado para os não-iniciados, isto é, para o povo em geral. O que ocorre no palco serviria apenas para distrair a platéia e manter a estabilidade do sistema, perpetuando o mito da democracia como "governo do povo". Por motivos óbvios, a mídia pertence a este segundo espaço ¾ mas os fatos políticos relevantes ocorreriam no primeiro, nos bastidores.
Não se trata de negar as imperfeições da democracia formal, que se caracteriza, de fato, pela limitação da participação política popular. Mas a distinção entre bastidores e palco merece ser relativizada por, no mínimo, quatro fatores:
1) longe de ser um dado "da natureza", como quer a tradição do pensamento elitista (de Mosca, Pareto, Schumpeter e seus muitos seguidores atuais), a passividade política da "massa" precisa ser produzida. Aliás, uma investigação sobre o papel dos meios de comunicação na produção desta passividade seria de grande interesse;
2) nem sempre a "massa" se mantém passiva. Pelo contrário, ela irrompe, de tempos em tempos no jogo político ¾ a platéia invade o palco e tumultua aquilo que fora acertado nos bastidores;
3) nos regimes formalmente democráticos, o povo mantém a prerrogativa de decidir quem exercerá o poder político. Ou, continuando com a metáfora, a platéia decide quem vai para os bastidores, e em qual posição (ou ao menos controla parte da decisão, já que os grandes patrões e os chefes militares, por exemplo, influenciam a política sem se submeterem ao crivo das eleições). Alguns autores reduzem o processo eleitoral a um ritual de coesão social, desprovido de conseqüências práticas, mas o argumento não se sustenta. É difícil sustentar que votar em Hitler, em vez de nos sociais-democratas, nos comunistas ou na direita tradicional, na Alemanha de 1933, não tinha conseqüências importantes. Ou em Salvador Allende, no Chile em 1970. Ou, tomando um exemplo menos dramático, que a vitória de Lula, e não de Collor, em 1989, não representaria um curso diferente para a história imediata do Brasil;
4) mas não é só no momento eleitoral que a voz da platéia se faz ouvir. O público não é indiferente ao que ocorre nos bastidores, nem estes são impermeáveis à sua curiosidade. Muitas vezes, uma "revelação" dos bastidores é um momento crucial do jogo político ¾ Watergate e o impeachment de Collor são dois exemplos óbvios.
O que os elitistas apontam como natural ¾ a desigualdade política, a profunda divisão entre governantes e governados ¾ é fruto de uma organização social que concentra em poucas mãos o capital político16. Alguns poucos monopolizam a capacidade de intervir no campo político ¾ exatamente porque os outros internalizam a própria impotência e oferecem o reconhecimento de que aqueles poucos são os "líderes". Se o reconhecimento social é a chave da conquista do capital político, avulta a importância da mídia, principal difusora do prestígio e do reconhecimento social nas sociedades contemporâneas.

NOTAS
1 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. A edição original é de 1966.
2 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
3 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1994.
4 COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura. Rio de Janeiro, Record, 1998.
5 Ver FAUSTO. op. cit., pp. 418, 502, 376 e 484.
6 Idem, pp. 529-550.
7 Idem., pp. 597-640.
8 Ver MEYROWITZ, Joshua. No sense of place. Oxford, Oxford University Press, 1985.
9 MIGUEL, Luis Felipe. "O jornalismo como 'sistema perito'". In Tempo Social. São Paulo, FFLCH-USP, 1999, vol. 11, nº 1, pp. 197-208.
10 MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 145.
11 Chateaubriand é citado apenas quatro vezes, e sempre en passant, em Brasil: de Getúlio a Castelo.
12 KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 167.
13 Ver o depoimento de Antônio Carlos Magalhães em COUTO. op. cit., p. 378.
14 KUCINSKI. op. cit., p. 172.
15 LIPPMANN, Walter. Public opinion. New York, Free Press, 1997, p. 203.
16 Ver, BOURDIEU, Pierre. La distinction: critique sociale du jugement. Paris, Minuit, 1979.