Mãe preta, Mãe África e Civilização
Elisa Larkin Nascimento*
Finalizo este artigo no dia 28 de setembro, Dia da Mãe Preta. Aqui no Rio de Janeiro, estamos celebrando os dez anos de Criola, entidade pioneira de mulheres negras. Essa coincidência me faz refletir sobre a evolução da imagem da mulher negra no Brasil. É impressionante o contraste. Por um lado, prevalece há séculos a noção convencional da Mãe Preta construída pela sociedade racista: um símbolo de subordinação, abnegação e bondade passiva. Por outro lado, surge o retrato da mulher negra construído por ela própria na ação social, na militância política e na vivência cultural, imagem esta concretizada na Casa de Cultura que edita esta revista Eparrei e em todas as organizações de mulheres negras. A Mãe Stella nos brindou esses dias com suas belas palavras a respeito dessa mulher Oya, rápida como o vento ao derrubar preconceitos e construir democracia. O tema da civilização africana nos propicia uma compreensão mais profunda de suas origens e identidade histórica, além de caracterizar o interface da questão racial com a questão de gênero.

Gênero e raça: as interfaces
O patriarcalismo associa as desigualdades sociais de gênero à condição feminina como conseqüências "naturais" da diferença entre os sexos. O racismo faz o mesmo com respeito às desigualdades raciais, de acordo com preconceitos e estereótipos derivados das teorias da inferioridade biológica do negro. Ou seja, o sexismo e o racismo se constituem e operam essencialmente da mesma forma. Os projetos de identidade dos movimentos sociais passam pela desconstrução das representações negativas da mulher e do negro criadas pelas ideologias do patriarcalismo e do supremacismo branco.
Uma das representações mais fortes a respeito da mulher e do africano é a de sua suposta incapacidade para criar conhecimento e operar avanços tecnológicos, uma noção que se revela patentemente irônica quando conhecemos um pouco da história africana. Não apenas os povos africanos construíram as bases da civilização ocidental, mas as mulheres exerceram um papel de parceria e liderança nesse contexto.
O antigo Egito e o conhecimento humano
Na versão corrente da história da filosofia, da ciência e da civilização ocidental, elas brotam subitamente na Grécia antiga, como se não tivessem raízes anteriores no Egito, cujas pirâmides são frutos da construção, ao longo de vários milênios, de um profundo e desenvolvido conhecimento humano. Os hieróglifos egípcios e seus antecedentes constituem o primeiro sistema de escrita, e o calendário do Egito antigo era mais exato do que o moderno. O sistema dos mistérios continha os principais elementos da ética e arrazoados sobre a vida em sociedade. Os egípcios manipulavam uma adiantada matemática abstrata desde treze séculos antes de Euclides: identificavam o valor de pi com uma exatidão sem precedentes; calculavam ângulos à precisão de 0,07o; desenvolviam sofisticadas técnicas e teoremas na matemática, geometria e engenharia. Hipócrates, o médico grego, é tido como fundador da medicina, quando dois milênios e meio antes os egípcios Atótis, Imhotep e seus sucessores desenvolviam os fundamentos de uma medicina objetiva e científica. Datada de 2.600 a.C., o papiro Smith, contém capítulos sobre doenças intestinais, hemintiase, oftalmalogia, dermatologia, ginecologia, obstetria, diagnóstica de gravidez, odontologia, e o tratamento cirúrgico de abscessos, tumores, fraturas e queimaduras. Esses egípcios iniciavam o conhecimento da farmacologia, patologia e anatomia, das técnicas de assepsia, hemostasia por cauterização, suturas, antissepsia com sais minerais, e vários outros tratamentos e curas.
Não podemos expor aqui os conteúdos do conhecimento e os avanços tecnológicos alcançados pela civilização egípcia. Cumpre registrar a tentativa de seu aniquilamento nos anais de uma História vista e projetada através de uma lente que apresenta o "milagre grego" como início prístino do desenvolvimento do conhecimento. Outra forma de negação do legado africano é a insistência em caracterizar a civilização egípcia como realização de outros povos, invasores do norte, ou ainda a persistente negação da identidade africana e negra dos egípcios. A obra de Cheikh Anta Diop, referência básica do resgate desse legado civilizatório, restabelece essas verdades por meio de rigorosa pesquisa científica.

O desenvolvimento tecnológico africano
Tais conquistas não se restringem apenas ao Egito. As tecnologias de mineração e metalurgia, a agricultura e a criação de gado, as ciências, a medicina, a matemática, a engenharia, a astronomia, enfim, todo um cabedal de reflexão e conhecimento caracterizava o desenvolvimento dos estados africanos. Em 1879, um cirurgião inglês visitava a região do atual país de Uganda, e registrou uma cesariana feita por médicos do povo banyoro, demonstrando profundo conhecimento dos conceitos e técnicas de assepsia, anestesia, hemostasia, cauterização, e outros aspectos da medicina. Praticava-se a remoção de cataratas oculares através de cirurgias, e tumores cerebrais eram operados no Egito, há mais de quatro milênios. A astronomia é um destaque do saber africano. No Quênia, encontram-se, ao lado do Lago Turkana, os restos de um observatório astronômico semelhante a Stonehenge, na Inglaterra. Um sistema de calendário complexo e preciso foi desenvolvido até o primeiro milênio a.C. na África oriental, com base nos cálculos astronômicos. Os dogon, que vivem nas terras do antigo império de Mali, perto da capital universitário de Timbuktu, detêm uma concepção moderna do universo e um conceito extremamente complexo da astronomia. Desde há seis séculos, eles já conheciam o sistema solar, a Via Láctea com sua estrutura espiral, as luas de Júpiter, e os anéis de Saturno. Sabiam da natureza deserta e infecunda da lua, e muito antes que o ocidente conseguisse observá-lo com a ajuda de sofisticados aparelhos, conheciam o pequenino satélite da estrela Sírio, o Sírio B, invisível ao olho nu. Denominavam-no PoTolo, e desenhavam, com exata precisão, a sua órbita elítica em torno de Sírio. Projetaram corretamente a sua trajetória até o ano 1990, em desenhos que conferem precisamente com o curso projetado pela astronomia moderna.
No campo da metalurgia, há vários exemplos como o dos haya, povo de fala banta habitante de uma região de Tanzânia perto do lago Vitória. Há dois mil anos, produziam aço em fornos que atingiam temperaturas bem mais altas do que fossem capazes os fornos europeus até o século XIX. Com base na tradição oral, a antiga tecnologia de fundição foi reproduzida fisicamente, confirmando sua eficácia. Monomatapa, em Zimbábue, é outro exemplo da tecnologia aplicada na África antiga. Capital de um império que durou trezentos anos, sua construção significa uma verdadeira façanha de engenharia, encerrando uma cidade murada de dez mil habitantes. Estudiosos atribuíram sua construção a povos exógenos à África, e até a extraterrestres. Entretanto, o esforço de negar à África a sua autoria foi em vão, e este se agrega a outros incontáveis exemplos do desenvolvimento tecnológico na África tradicional.
Aspectos antigos da questão de gênero

Como observamos no início, o racismo e o patriarcalismo se cruzam numa dinâmica de interação e dependência mútua. A crítica à dominação racial se entrelaça com a crítica ao patriarcalismo. Cheikh Anta Diop mostra que um dos principais elos a unir as culturas pré-coloniais da África é a organização social matrilinear, ou seja, aquela em que a ancestralidade é traçada a partir da mãe e, ao contrário das sociedades patriarcais, a mulher exerce direitos como o de herdar e ser proprietária. A noção da evolução universal postula que todos os povos humanos avançam desde o estágio da "horda primitiva" e as fases de matriarcalismo e matrilinearidade (também "primitivas"), até atingir o ápice do desenvolvimento, estágio da luz: o patriarcalismo. Diop analisa o viés eurocentrista dessa teoria, sua falta de sustentação empírica e seu embasamento na distorção dos dados. O chamado "estágio primitivo" da matrilinearidade caracterizava algumas das sociedades mais adiantadas e altamente organizadas da história, como as do Egito e do império de Gana. Nelas, a mulher protagonizava a organização jurídica, econômica, social e política. Indaga Diop, contestando a teoria evolucionista: qual a sociedade mais plenamente desenvolvida - a que nega à metade de sua população a plena condição humana, ou a que reconhece e estimula em todos a sua capacidade de realização e contribuição à vida coletiva? No caso do Egito antigo, a partilha do poder no âmbito político e religioso vem desde os tempos

Aí encontramos a origem histórica da mulher Oya que Mãe Stella descreveu com tanta eloqüência e que informa a nova imagem da mulher negra brasileira, contrastada à Mãe Preta da sociedade escravista. A antiga civilização africana conta com mulheres soberanas e propicia a partilha do poder entre os sexos. A Mãe África é a fonte dessa força feminina guerreira. Em outra ocasião, talvez, poderemos visitar a influência dessa civilização sobre outros povos e sociedades do mundo antigo desde a Europa até o leste da Ásia e as Américas, outra face da fecundidade da Mãe África.
Elisa Larkin Nascimento Doutora em psicologia pela USP e mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova Iorque. Ajudou a fundar o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Entre outros títulos, é autora de Pan-africanismo na América do Sul (1981), A África na escola brasileira (1991), Sankofa: Resgate da cultura afro-brasileira, 2 vs. (1994), Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira (1996) e O sortilégio da cor: Raça, Gênero e Identidade no Brasil (tese de doutorado, Instituto de Psicologia da USP, Editora Summus/ Selo Negro, 2003).
Fonte: www.casadeculturadamulhernegra.org.br/
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